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Por que o local de fala é importante, ou como nós, brancos, somos racistas sem perceber


Fonte: https://eugordinha.wordpress.com/2012/04/19/alma-nao-tem-cor/alma-nao-tem-cor/

Esses dias, postei no Facebook um print de um cara dizendo orgulhosamente que, mesmo sendo preto, ele reconhecia que “quem ergueu a civilização ocidental foram os europeus” e que ele era “seguidor de uma pessoa branca”, referindo-se expressamente a Jesus Cristo. Minha intenção - ao menos conscientemente - de compartilhar isso foi a seguinte: trazer à tona o nível de dominação mental em que uma imensa parte dos brasileiros vive em pleno 2016. Fiz isso considerando que seria de conhecimento geral (pelo menos, eu pensava até ali que fosse) que quem ergueu a civilização ocidental foi mão-de-obra preta e indígena, por meio de escravização realizada por brancos. E também supus que praticamente todos sabiam que fisiológica e geograficamente seria no mínimo um tanto improvável que Jesus de Nazaré tenha sido branco. Ok.

Daí que uma mulher preta veio falar comigo no inbox que o post era racista, recomendando que eu o apagasse. Perguntei se ela poderia me explicar o porquê disso, o que ela fez pacientemente. Prestei atenção ao que ela disse, concordei, me senti envergonhada e apaguei a publicação.

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“Não existe racismo” ou “Foram os brancos que construíram a civilização ocidental”, por exemplo, são discursos que muitos pretos tiveram que adotar para conseguir um direito básico: o de sobreviver.

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Ela me fez entender que, no fundo, eu estava trazendo um homem preto à praça pública para ser linchado. Mesmo sem perceber, eu estava dizendo o seguinte: “Olha só esse rapaz, coitado, ele nem sabe pensar, vamos ensiná-lo o que é melhor”. Ela enfatizou que, além de o povo preto não precisar da nossa pena (a dos brancos), não cabe a nós determinar o que eles devem pensar ou dizer. Ela ensinou, também, que muito do que os pretos dizem, à primeira vista, pode parecer uma linguagem de submissão, e, no entanto, demonstra resistência ao racismo instituído. “Não existe racismo” ou “Foram os brancos que construíram a civilização ocidental”, por exemplo, são discursos que muitos pretos tiveram que adotar para conseguir um direito básico: o de sobreviver.

Além disso, num dos comentários que fiz no post, afirmei que o cara tinha um “bom vocabulário”, no sentido de que a forma do que era dito era boa, ao passo que o conteúdo era péssimo. Ela me explicou que esse comentário também foi bastante racista. A lição que ela me deu foi tão elucidativa que a citarei na literalidade aqui: “Eu não sei o que você quer dizer com bom vocabulário, para mim só pode ser aquela convenção social branca que hierarquiza conhecimentos e diz que o jeito branco de se expressar é o melhor. Você sabe que muito do que é considerado um português ruim é na verdade a permanência de línguas bantu e yoruba, então um português ruim é na verdade um português enegrecido”. Vrau.

A intenção desse texto não é pedir desculpa e, assim, ganhar biscoitinhos. O que estou tentando dizer é: não cabe a nós, brancos, definir o que os pretos devem pensar e dizer a respeito de nada, nem do racismo. Eu sei que, na ânsia de ver um mundo mais justo em que nenhum ser humano seja subjugado, queremos de qualquer forma ser “aliados” nas lutas que não são imediatamente nossas. Tudo bem, mas precisamos ter cuidado nisso. Sabe por quê? Porque, nesse caso, quem é branco invariavelmente nasceu e cresceu aprendendo - dentre outras coisas abomináveis - que é superior, que sua voz é mais importante que a de outros, e, embora racionalmente possamos não concordar, isso está ecoando no nosso inconsciente e pode se manifestar até mesmo de formas sutis e imperceptíveis para nós. Então, aconteça o que acontecer, não falemos por uma pessoa preta. Nosso papel enquanto brancos na luta contra o racismo não é esse. Até porque, novamente citando a minha professora, “É desonesto pegar a fala de um homem preto com toda uma trajetória e descolar ela dessa trajetória e dizer que é só reflexo de uma dominação branca, sem falar que é pensar como um colonizador porque é não ver as minúcias das resistências”.

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A nossa contribuição, como brancos, deve ser discutindo e desconstruindo a branquitude. Discutindo entre nós e com eles, ouvindo-os, muito mais do que dizendo

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Paremos de pensar como colonizadores. É necessário abandonar os privilégios e isso inclui abandonar a forma como olhamos o mundo. Não devemos nos sentir autorizados a falar por pessoas pretas. A nossa contribuição, como brancos, deve ser discutindo e desconstruindo a branquitude. Discutindo entre nós e com eles, ouvindo-os, muito mais do que dizendo. Não é um exercício simples, mas, se queremos de fato lutar contra o racismo, é a nossa única forma possível.

Então, se houver alguma dúvida sobre uma determinada colocação sua ser racista, tenha a humildade de perguntar a uma pessoa que não apenas leu a respeito, viu e ouviu episódios sobre, mas alguém que tem aquela vivência de fato (nesse caso, uma pessoa preta). Ao se posicionar na militância anti-racista, tenha o cuidado de observar se você não está falando por outra pessoa, com sua perspectiva viciada de privilegiado(a). O local de fala importa e precisa ser respeitado, sob pena de reproduzirmos aquilo contra o que estamos tentando lutar.

Lara Lorenzoni é advogada militante, mestranda, guitarrista, pseudoDJ nas horas vagas e não apoiou o golpe. Gosta de escrever tanto quanto gosta de comer e dormir e está tentando se desvencilhar das visões de mundo que o patriarcado internalizou. São muitas, mas ela garante que não irá desistir.

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