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"Steven Universo" e a representatividade racial, de gênero e LGBT

Em tempos sombrios, de retrocessos políticos e sociais, um pouquinho de esperança é um alento. Steven Universo, exibido no Cartoon Network e no Netflix, é um respiro de sobriedade nesse mundo insano que caminha em marcha ré. Isso se deve, em grande parte, à sensibilidade e originalidade de Rebecca Sugar, criadora do desenho. Ela fez parte do time de criação de Hora de Aventura, tendo sido responsável por alguns episódios excepcionais, possui três indicações para o Emmy Awards, e se tornou a primeira mulher a lançar uma série de animação para o Cartoon Network, com Steven Universo e as Crystal Gems.

A série surge de uma leva de animações infantis (junto com Hora de Aventura, Apenas um Show, Mundo de Gumball e Historietas Assombradas para Crianças Mal-Criadas) que foge de modelos narrativos pobres e quadrados, além de seguirem princípios politicamente corretos: inclusivos e respeitosos diante de grupos sociais diversos. Sem deixar de cumprir seu papel de entretenimento com maestria. Eles são, não raro, mais originais e criativos que desenhos de gerações anteriores, com o plus de serem moralmente mais livres e empáticos.

Steven Universo merece destaque pois – falo sem exagero algum – é genial: a delicadeza para tratar de temas polêmicos, o respeito aos grupos socialmente desprivilegiados colocado em cada pequeno de detalhe; o amor e a empatia que transbordam pela história inteira. Um desenho precisamente atual.

A representatividade (racial, LGBT, de gênero e de padrões de beleza não-mainstream), por exemplo, é parte essencial da série e está presente em todos os personagens principais. Apesar disso, passa longe de ser um panfleto de propaganda* LGBT, feminista e de igualdade racial: trata-se de uma história sensível sobre um deslumbramento infantil, despretensioso, diante do mundo, bem como suas descobertas; ao mesmo tempo que fala sobre coragem, força, compaixão e amor. E sobre como tudo isso, pode sim, vir no mesmo pacote. E é nesse universo que a diversidade vem inserida com absoluta naturalidade nos personagens. Segundo a própria criadora da série, eles são “imperfeitos” e são maravilhosos.

O fato de se tratar de um desenho infantil é reconfortante, pois faz pensar que a próxima geração terá algumas referências socialmente incríveis. E é reconfortante também saber que não se trata de um desenho marginal, mas suficientemente mainstream: ele é, atualmente, um dos carros chefes do Cartoon Network, e no ano de sua estreia foi a série com maior audiência no canal.

Não traz uma luz de esperança saber que as crianças de senhores e senhoras reacionários estejam assistindo a esse desenho, saber que os “inimigos” ideológicos de seus pais estejam sendo surrupiados para dentro de suas casas, debaixo de seus próprios narizes? “Contaminando” e cativando, envolvendo seus filhos e ensinando-os a amar o que é diferente?

A REPRESENTATIVIDADE (RACIAL E DE GÊNERO) E A QUEBRA DE ESTEREÓTIPOS

Steven e Connie dançando juntos

Apesar de o protagonista ser o Steven, as personagens mais poderosas são todas mulheres. Steven é uma criança que está aprendendo a dominar os poderes que emanam de sua pedra mágica, o quartzo rosa, que fica no lugar de seu umbigo. O desenho tem início quando ele vai morar com as super-heroínas Crystal Gems, grandes amigas de sua falecida mãe, que o ajudarão a controlar seus poderes.

Elas são, originariamente, guerreiras extraterrestres que escolheram proteger a terra contra ameaças alienígenas de sua própria espécie. Cada uma delas é tão diferente da outra quanto possível. A começar pela aparência física: Garnet é muito alta, tem black power, quadris largos, lábios grossos e pele vermelha. Pérola também é alta, mas bem magra, branca, e possui nariz grande e traços finos; Ametista é baixinha, gordinha, tem a pele lilás, cabelos longos, cheios e platinados. As personalidades e os gostos das três também são bastante distintos. Nenhuma delas encorpora padrões de beleza mainstream e cada uma delas cativa por suas peculiaridades. Não há muitas super-heroínas com tons de pele escura, por aí, e a existência delas faz uma enorme diferença: elas são a inspiração e o modelo comportamental do nosso protagonista, estando constantemente presentes em sua vida!

O Steven é um (aspirante a) herói distante do esterótipo másculo e imbatível. Ele é gordinho, tem cabelos cacheados, gosta de guloseimas que toda criança adora, é empolgado e extremamente sensível, dotado de enorme compaixão para com amigos ou inimigos. Além disso, com seus amigos e familiares, seu senso de proteção é enorme, o que se materializa em alguns de seus poderes mágicos: um escudo e uma bolha rosa, que defendem contra qualquer ataque.

Há ainda outra quebra de estereótipo bastante simples mas que faz um mundo de diferença. Tudo ligado ao Steven é rosa: a sua pedra, um quartzo que lhe confere seus poderes; seus próprios poderes quando se manifestam são cor-de-rosa, bem como as armas e o leão mágico que ele herda de sua mãe; e ainda a camiseta que ele usa o tempo inteiro. Indo na contramão dessa bobagenzinha chata de “rosa para menina”, “azul para menino”.

Apesar de usar uma camisa rosa o tempo inteiro e ter sido criado por três figuras femininas (uma delas, inclusive, é um relacionamento lésbico; o que será explicado no próximo tópico), Steven não apresenta sinais de homossexualidade. Ele possui uma namoradinha, a Connie, que é extremamente inteligente, determinada, corajosa e tem a pele negra (!). Quantos pares românticos de heróis, vistos na mídia, são inter-raciais?!

A REPRESENTATIVIDADE LGBT

Garnet, uma fusão entre duas gems, provando que ela é feita de amor

A representatividade LGBT, embora sempre presente, não é evidenciada desde o começo da série. Por ser exibida em um canal infantil transmitido, inclusive, em países onde a homossexualidade ainda é crime, a necessidade de uma abordagem cuidadosa não é mistério algum. Lidar com um Outro, conservador e preconceituoso, pode ser feito por abordagens furiosamente militantes e panfletárias; ou com delicadeza e do tato. Acredito na necessidade de abordagens agressivas, primeiramente, porque elas são muito humanas. Sua carga emocional contêm verdades sobre violências sofridas que o Outro talvez só consiga visualizar pelo choro ou pelo grito. Em outros casos, com o grito não se chega a lugar algum.

Apenas no final da primeira temporada é que descobrimos que a Garnet, líder das Crystal Gems – tão forte, centrada e atenciosa – é, na verdade, uma fusão de outras duas gems: Rubi e Safira. Algumas gems se fundem em modo de batalha, para se tornarem mais fortes; mas no caso das duas, não existe “lógica” aparente. Exceto o amor entre ambas, que simplesmente escolheram estar juntas o tempo inteiro. A afeição e o envolvimento entre Rubi e Safira é evidente, mas o amor como grande motivo da união das duas será frisado nas temporadas seguintes.

Caso esse fato fosse revelado desde o começo da temporada, o público não teria sido cativado ainda pela Garnet, e eventuais preconceitos interfeririam na fruição do desenho. Pais conservadores poderiam tê-lo vetado desde o princípio, por exemplo. Da forma como foi feito, os preconceitos foram desarmados. Kill them with kindness (mate-os com gentileza); cative seus inimigos com amor. É isso o que tenta nos ensinar Steven Universo, tanto em sua estrutura narrativa, quanto no retrato de um herói compassivo e corajoso, capaz de converter seus opositores.

No meio disso tudo, me pergunto se ainda é necessário explicar porque representatividade é importante. Nas palavras da criadora da série:

Se você esperar para dizer às crianças e aos jovens LGBT que o que eles sentem tem importância ou que eles sequer existem como pessoas, pode ser tarde demais! Você precisa conversar e precisa ser igual para todos. Eu penso em contos de fadas ou em filmes da Disney e a forma como amor sempre é discutido com as crianças. Falam que precisam sonhar com esse amor que vai satisfazer todas as suas necessidades. O príncipe e a Branca de Neve não são os pais de alguém, eles são alguém que a criança quer ser. Ela está sonhando com um futuro onde encontrará felicidade. Por que todo mundo não pode ter isso?! É realmente absurdo pensar que nem todo mundo deveria ter isso.

(Obs.: eu entendo o problema com alguns contos de fadas, seus finais felizes e a hiper-idealização do amor romântico. Creio que Rebecca Sugar entenda também, uma vez que ela não adota fórmulas tão simplistas. O que ela possivelmente quer dizer é que todos merecem fazer parte desse mesmo sistema de significação. Se em alguns casos são ilusórios, em outros não)

A HISTÓRIA

retrato da Rose Quartz

As Crystal Gems são guerreiras extraterrestres que escolheram proteger a terra contra ameaças alienígenas de sua própria espécie. No passado, fizeram parte dos exércitos que dominariam e colonizariam nosso planeta, mas se sensibilizaram tão profundamente diante da vida orgânica na terra (elas são personificações de pedras preciosas, portanto, são minerais, e não orgânicas) que formaram um grupo rebelde contra sua própria espécie. Na rebelião, liderada por Rose Quartz, saíram vitoriosas.

Rose Quartz não aparece no tempo presente da narrativa do desenho. Ela se encantou de tal forma com a vida na terra que liderou a rebelião contra as demais Gems. Havia algo de especial em Rose Quartz. Além de extremamente sensível, ela era uma grande líder, capaz de cativar e despertar empatia nos outros. Milênios após ter saído vitoriosa ao defender a terra, ela se apaixonou por um humano, Greg. Ela engravidou – algo nunca nunca havia acontecido com uma gem – e ao dar a luz, deu sua vida para que seu filho nascesse. Não é propriamente como se ela tivesse morrido, é como se ela, literalmente, vivesse em seu filho, Steven, um híbrido de gem e humano. Como Steven possui a pedra de sua mãe, o quartzo rosa, possui também seus poderes, que está desenvolvendo e aprendendo a controlar. O antissexismo do desenho está presente inclusive nisso, no fato da essência e do poder que estavam presentes na mãe, agora se manifestarem no filho.

*e tudo isso o torna um panfleto LGBT, de igualdade racial e de gênero ainda mais eficiente, surrupiando ideais de diversidade com delicadeza no inconsciente das crianças. Muahahaha

Lis Kuroki é artista visual, escritora, e um ser humano igual a todo mundo, com pulsões, vontades, sono e fome. Aqui no blog seus textos são recheados de achismos conscientes, mais ou menos embasados em teorias respeitáveis. Somadas a uma boa dose de empirismo.

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