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sobre incômodos contemporâneos

Há pouco tempo comecei a me considerar 'oficialmente' feminista. De lá pra cá, tenho lido sobre o assunto, criei, com uma amiga, um canal no YouTube sobre o tema e começamos um diário de leitura sobre o livro 'O segundo sexo', da Simone de Beauvoir. Aprendi sobre o significado da palavra 'sororidade', sobre tudo o que ela carrega e também sobre o que ainda exclui. Descobri uma das autoras mais lindas desse mundo: a Chimamanda. Comecei a ver os machismos sutis que deixava passar, comecei a ser mais exigente com filmes, livros, peças, discursos. Questionei as músicas que mais gostava desde adolescente. Os livros escritos por mulheres passaram a dividir espaço com os outros nas prateleiras, ocupadas majoritariamente por autores do sexo masculino. Mudei meu olhar sobre como as mulheres falam de si próprias. Reforcei a intenção de que devemos nos apoiar, não o contrário. Aceitei o fato de que não há problema em não gostar de me maquiar ou de me encher de sapatos e bolsas e de preferir, muito mais, comprar livros ao invés dessas coisas. Ao mesmo tempo, ver que não há nada de errado em mulheres que preferem e gostam investir seu dinheiro em coisas que detesto. E que podemos ser amigas, nos respeitar e nos admirar, mesmo com essas e outras diferenças.

Tudo isso é bonito. Mas se a palavra 'alteridade' na antropologia, 'sororidade' no feminismo e 'caridade' no cristianismo incomoda, não é a toa.

Dia desses, a vigilante que trabalha no meu prédio abriu os meus olhos sobre questões de violência contra a mulher. A região em que trabalho é uma das que concentra os problemas sociais de Brasília. Lá tem de tudo: drogas, prostituição, miséria, malandragem, gente engravatada, policiais, fiscalização que fecha os olhos, trabalhador. E por ali, dormem muitas pessoas em situação de rua e viciados em crack. Todos os dias pela manhã vemos aquele cenário incômodo, triste, pessimista. Ter acesso a esses lugares e prestar atenção neles põe em xeque a nossa crença de mudança. Contraditoriamente, qualquer possibilidade de transformação deveria começar justamente ali.

Diariamente, ao chegar nessa região, me deparo com aquelas pessoas e nunca deixo de sentir esse desconforto, esse misto de 'classe média sofre' e tristeza. Não porque ficam em frente à porta do meu trabalho, mas por saber que não há nada de concreto que eu possa fazer por elxs. Uma das pessoas que está sempre por ali é uma mulher, que passa a maior parte do dia dormindo. Mas nunca - por ingenuidade, por viver em um lugar tão privilegiado e que desconhece as violências mais óbvias - tinha pensado sobre o acréscimo de violência que as mulheres em situação de rua sofrem. Se todas as mulheres sofrem assédio e muitas passam pela experiência do estupro, imagine como vivem as mais vulneráveis.

E num dia qualquer, conversando sobre a história dessa mulher, a vigilante me contou sobre a quantidade de vezes que a viu, descendo da viatura da polícia militar enquanto gritava 'eles só querem me comer'.

Esse relato me lembrou o filme "Anjos do sol" que aborda a exploração sexual de menores de idade. O filme todo é triste e nos deixa com um sentimento desesperançoso, mas a cena final, na minha perspectiva, é a que deixa esse recado: as coisas são muito mais difíceis que parecem. Nessa cena, a personagem principal consegue fugir do prostíbulo em que trabalha. O último quadro do filme mostra a menina pedindo uma carona e o caminhoneiro insinua a necessidade de sexo em troca do 'favor'. A menina, sem nenhuma perspectiva, estende a mão ao caminhoneiro, aceitando sua proposta. O filme termina e o sentimento é de 'não tem mais jeito'. Todos os aprendizados que ela teve, a bagagem que ela carrega, a única maneira que ela aprendeu de conseguir as coisas, e a ausência total de oportunidades, levam Maria a continuar a ver seu corpo como moeda de troca e o sexo [leia-se: estupro] como algo natural que homens praticam.

Em uma situação análoga - não conheço a moça perto do meu trabalho, não sei quantos anos ela tem, seu nome ou quando e a razão dela estar naquela situação - saber e trazer à consciência as possíveis situações 'extras' as quais essa moça está exposta me traz um inevitável sentimento de total desesperança. Se todos as pessoas em situação de rua sofrem violências e se submetem a situações que nenhum ser humano deveria passar, o que se pode dizer sobre as particularidades das experiências desse gênero historicamente tão desprivilegiado?

Não é possível saber se há ou haverá um 'jeito', uma solução, para essas questões. Cada mulher, em cada contexto em que está inserida, possui suas próprias amarras. O que a palavra 'sororidade' ensina é esse caminho da solidariedade, de tentar nos aproximar das diferentes realidades e, ao menos, conseguir enxergar as diferentes necessidades existentes.

Depois de mais de um ano trabalhando nesse prédio, consegui enxergar essa mulher, que está lá todos os dias, como mulher. Como alguém que passa por opressões e necessidades tão diferentes das minhas, mas que se eu fosse exposta às mesmas circunstâncias, certamente partilharia de seu sofrimento e conseguiria ver quanta força é preciso ter para suportar.

Colaboradora: Raíssa Christófaro, feminista, bibliotecária e futura antropóloga.Integrante do canal Leituras Alheias.

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