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Agora eu não posso mais morrer


Descobri que vela de citronela espanta pernilongos, inclusive o aedes. Contei isso pra ela.

__ Acende a vela, mamãe! Acende a vela!

__ Você quer que eu acenda?

__ Acenda!

__ Bonita a sua meia nova, filha.

__ Meia! É! Mas acende a meia, mamãe! __ A meia?

__ Não! A leva!

__ A leva?

__ Acende a leva! A... leva! __ Vela? __ Vela! A vela, mamãe! Acende!

Esperar o tempo que leva a linguagem, sugerindo seus usos sem intromissões, correções cortantes, imposições da gramática. Deixar ela ser poesia, desenvolver com as formas seu próprio conteúdo. Como quando a ouvi conjugar o verbo “querer” pela primeira vez na primeira pessoa do singular do presente do indicativo. Até aquele momento era “qué”. Quando amanheceu, fiz a ela uma pergunta. A resposta tomou corpo: “Eu quero.” Uau. Agora ela sabe dizer “eu quero” e assim como surge para mim a consciência de que ela é uma pessoa que se sabe querendo, ela também sabe que agora sabe que quer e o quê.

Se eu for esperta, espero. Ela entrar no ritmo dela trazendo o carrinho da nenê, estacionar perto do box, tirar a nenezinha, afofar a roupa suja do cesto para colocar a boneca sentada esperando por ela, encaixar o carrinho atravessado no banheiro, onde eu tropeço várias vezes no mesmo banho e quase caio, mas é onde ela pretende e vai deixar as coisas dela, porque há intenção e metodologia que faz sentido pra ela e não faz pra mim, que já estou há 15 minutos atrasada há meia hora e só penso em arrumar um jeito de dar banho na criança e conseguir sair de casa com ela limpa ainda.

Lentamente ela tira a roupinha. Insiste que seja sozinha. Eu espero que ela note que não consegue e me peça a ajuda que eu daria muito antes de ela pedir, se eu não achasse tão importante que ela aprendesse a pedir ajuda quando sentir necessidade, tão importante quanto aprender a tentar fazer sozinha tudo o que a torna digna e autônoma.

Eu espero, porque agilizar o tempo dela em alguns momentos é mal gastar nosso tempo juntas e pra criança nessa idade cada minuto é de aprendizado.

Se eu for esperta, ensino a ela que o meu espaço é o dela, que o dinheiro é nosso, a comida é nossa e que a vida que a gente compartilha não se fragmenta na distância, no desafio ou na despesa que ela me dá. Que a casa não é minha e por isso ela deve respeitar. Que a casa é dela e merece cuidados porque ela mesma deve ver vantagem e saúde no ambiente que recebe cuidados e que se eu mereço respeito é porque sou respeitável, não porque administro recursos financeiros que fazem parte do meu compromisso com a maternidade que ela não solicitou jamais, fui eu quem assumi por arbítrio.

Se eu for espera, espero o tempo da birra em silêncio e presença, dando o meu testemunho de que o exaspero que tem palco ainda é só exaspero e não solução.

O tempo que leva para a gente criar um ser humano de valor, um adulto de caráter. Eu não estou criando uma criança. Estou cuidando de uma criança, inventando um adulto, concebendo sobre a matéria prima o melhor jeito de orientar as tendências, guiando as virtudes naturais para a janela, ventilando os maus hábitos que já vêm programados no ego.

Sentei procurando ser discreta. Ou bem se dirige o carrinho até a escola ou bem se segura um guarda-chuva. A Peppa que ela coloca na boca caiu na poça. Trouxe comigo a Peppa suja para lavar antes de devolver, só que a cabeçona não cabia direito. Ela grita que está frio e molhando o pezinho como se eu a estivesse deixando de biquíni na neve. Vou parando para acomodá-la o melhor que posso. Isso tudo se pode ler, borrado e fosco, na minha figura ousada entrando na sala de reunião atrasada, com o cabelo pingando e a cabeça da Peppa pra fora da mochila.

Conversavam as duas sobre as preocupações impossíveis da maternidade quando eu cheguei ao segundo piso da livraria. Até que se aproximaram do tópico “perda da liberdade”.

__ Já pensou? Tudo o que você vai fazer precisa pensar na criança antes, com quem deixar, como... Pensar “meu Deus, agora eu não posso mais perder o emprego!”.

__ O que me assusta não é nem isso... É pensar “agora eu não posso mais morrer”.

Bingo.

Antes, morrer tanto fazia. Agora não. Não posso mais. Tenho que ser imortal até que ela possa consigo mesma.

Se eu for livre, além de esperta, espero o tempo que a vida leva.

Camila Caringe é muito mãe, bastante jornalista

consideravelmente afeita a queijo gouda,

na respectiva ordem de importância.

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