Investigador de plantão: violência institucional
- Camila Caringe
- 22 de fev. de 2016
- 2 min de leitura

Quando bateu à porta do investigador de polícia, sentiu que fazia algo errado duas vezes. Primeiro porque batia com a mão esquerda, já que a direita estava enfaixada. Segundo porque sentia o tipo de culpa que sente todo aquele que trai e segue inevitável a rota dos traíras. Ela traía.
Bateu de novo. Lá de dentro escapava escuro e silêncio.
Cogitava retroceder quando a porta abriu de repente.
Um senhor gordo e calvo perguntou o que ela queria.
Parecia óbvio que queria falar com ele. Era o departamento de investigação de um hospital e uma mulher machucada procurava o investigador durante a madrugada com um papel em mãos, registro da alegação de violência doméstica.
_ Quero falar.
_ Senta.
Na pequena salinha a luz se acendeu. Uma caminha estreita fazia teto para uma mala que tinha jeitão de prestar serviços a um investigador muito sério. A televisão ligada no mudo e uma portinha pro banheiro.
Sentou onde ele indicara e deu tempo de notar uma pequena aranha se esgueirando entre as letras enroscadas na teia da máquina de escrever sobre a mesa. Ao lado, um telefone analógico preto, daqueles com um grande disco na frente e seus números entre as bolinhas.
Ele olhou pra ela com cara de muito sono.
_ Deixa ver seu papel.
Ela estendeu.
Estava feito. O investigador perguntaria os detalhes e ela mal conseguiria relatar os anos em que vivera subjugada pela violência psicológica, moral e física a que esteve submetida, culminando naquele chute na mão direita.
_ Vou carimbar aqui e assinar. Vá amanhã a uma delegacia da mulher.
_ Só isso?
_ Sim. O que mais você quer?
_ …
_ Quer o endereço? Eu posso ver pra você.
Pegou o aparelho e começou a buscar os números no disco.
Deu tempo de reparar no mural das circulares na parede atrás dele. Uma mensagem com a imagem de um grande sol dizendo “¡Buenos días ya viene el sol!”, uma escala de plantonistas, o calendário do mês e o maior e mais imponente alerta:
Art. 331 do Código Penal – Decreto Lei 2848/40
Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela
Pena: detenção de seis meses a dois anos ou multa.
Ela imaginou quantos acessos de desenfreada fúria aquele aviso extravagante teria inibido.
Ele desligou o telefone, anotou o endereço e despachou mais uma vítima.

Camila Caringe é muito mãe, bastante jornalista
consideravelmente afeita a queijo gouda,
na respectiva ordem de importância.
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