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Negrxs e policiais: o que Beyoncé tem a nos dizer?

A Beyoncé lançou uma música nova acompanhada de um clipe novo, na semana passada. O vídeo se tornou viral, e a música foi apresentada pela artista no intervalo do Superbowl, um evento muito aguardado e disputado da televisão norte-americana. Até aí nada parece grande novidade. Mas essa música, “Formation”, e principalmente o seu clipe tocam em questões importantes, polêmicas e necessárias. A discriminação racial, principalmente em ações policiais, que faz vítimas entre os jovens negros.

O clipe toca em questões fortemente americanas, falando de estados do país e do furacão Katrina, por exemplo. Mas o problema da discriminação policial contra a juventude negra também é uma marca do Brasil. E apesar do rebuliço que a música e o clipe criaram nos Estados Unidos, por aqui se prestou bem menos atenção do que se deveria. E se você não quer reparar porque imagina que deva ser ruim, porque você acha que cultura pop é sempre um lixo reciclado com um rótulo diferente, saiba que abaixar a bola às vezes é legal. Porque o clipe é incrível, principalmente quando se repara melhor. Então chegue mais, observe mais de perto.

Vamos por partes.

+ Num ano em que nenhum ator negro foi indicado ao Oscar, e num momento em que a palavra “representatividade” ganha cada vez mais destaque, -TODOS- os participantes do clipe são negros (ok, há os policiais que são brancos, mas peço licença para excluí-los dessa generalização, já que eles fazem papel de figurantes e de vilões). Não há necessidade de apelar por maior representação negra, não há “cotas raciais” que corram o risco de soar como um favor; o elenco INTEIRO é negro. E tem gente pra caramba no elenco. Logo no começo da letra, há referência às origens da artista, no sul dos Estados Unidos. Essa referência às suas origens rapidamente se transforma num orgulho imponente pela cor da sua pele:

Meu pai de Alabama, mamãe Louisiana,

mistura aquele negro com esta crioula

e faz uma caipira do Texas

Eu gosto do cabelo da minha bebê,

com cabelo de bebê afro

Eu gosto do meu nariz negro

com narinas de Jackson 5

Ganharam todo esse dinheiro,

mas nunca tiraram esse país de mim

Uma diva pop, que deveria estar submetida ao padrão de beleza eurocêntrico, caucasiano, de narizes afinalados e cabelos escorridos pode cantar isso aos quatro ventos? E é daí que vem a satisfação de ouví-la dizer isso em tão alto e bom som, ela já começa quebrando esses protocolos subentendidos e criptografados na mídia mainstream.

+ Ao longo do vídeo há algumas passagens de “época”, em que o figurino e o cenário parecem aludir ao século XIX – talvez começo do século XX? De qualquer forma, ao luxo e riqueza desse período. Uma parte que merece atenção é aos 2min18, quando vemos várias mulheres sentadas numa sala, usando vestidos de época ornamentados, cheios de rendas e detalhes, enquanto abanam-se e tomam chá. Essa poderia ser a cena de um livro clássico que retratasse a meandros dramáticos e filosóficos de burguesas ou aristocratas da época. Exceto por um detalhe doloroso e pertinente. Não havia negros ou negras “nobres” ou ricos no ocidente naquela época, porque eles eram todos escravos. Mesmo com o decreto da lei áurea em 1888, os negros ainda levariam décadas pra se erguerem socialmente. Percebem que essa imagem é como um sonho que só a arte pôde recriar? Uma utopia da artista, em que os negros sempre tivessem seu lugar na sociedade, sem terem sofrido humilhações, sem terem sido subjugados? O passado de dor e sangue não existe, aqui só a utopia é real. Ao menos dentro desses cenários, ao menos no intervalo entre o começo e o fim do clipe da rainha do pop.

+ O que nos leva ao termo “slay”, repetido tantas vezes na letra. “I slay, hey, I slay”, “we slay, ok”, repetido, eu chutaria, umas quarenta vezes. Não sei, muitas. Segundo o dicionário Merriam-Webster, “slay” significa “matar violentamente, com vontade, ou em grande número; abrangentemente. Derrubar”. Pois bem, quem melhor do que mulheres negras para falar sobre violência? A violência contra a mulher é um fato. A violência contra os negros é um fato. E mais uma vez Beyoncé reverte o papel da vítima desprivilegiada e a empodera; neste caso, transformando-a no “algoz” privilegiado. Nas partes da música em que a palavra mais é repetida, várias mulheres negras se enfileram, e dançam a coreografia com altivez. Se elas não são os algozes, elas são, com certeza, donas do seu próprio corpo, capazes de se defender, capazes de revidar. A violência contra os negros e as mulheres pode ser um fato, mas essas mulheres, “they slay all day”. Todo dia, pra elas, é uma luta e uma vitória. + Um pouco depois, aos 3min32, vem uma das partes que eu considero mais emocionantes. Um homem segura um jornal com a foto do Martin Luther King Jr., político e ativista que pronunciou o famoso discurso “I have a dream” (“Eu tenho um sonho”), no qual ele proclamava seus ideais de igualdade racial, isso em 1963. Pois bem, na capa do jornal “A Verdade” (não The New York Times, não Folha de São Paulo, mas “A verdade”), a manchete anuncia “Mais que um sonhador”. Enquanto Beyoncé canta que “eu sonho, eu trabalho duro, eu me esforço até eu conseguir”.

+ E daí vem uma outra parte emocionante, que é a de um menininho com um casaco de capuz, dançando na frente de uma linha de policiais da tropa de choque. Dançando de forma muito hábil e impressionante, de uma forma que você geralmente não imagina que crianças daquele tamanho sejam capazes de dançar. Recortando essa cena há várias outras, incluindo, novamente, as mulheres encabeçadas por Beyoncé coreografando e cantando “we slay”. Sempre que elas aparecem a qualidade da imagem repentinamente se modifica, fica muito inferior e remete a imagens de câmeras de segurança. O mesmo acontece com o homem aos 3min, cravados, na loja de conveniência; que dança, também habilmente, sozinho. Ali não há ladrões ou criminosos. Mas as câmeras de segurança, atentas, vigilantes, ainda desconfiam e confessam, sem querer, dentro do seu enquadramento, quais seriam seus alvos prioritários. Quando o garotinho negro de capuz termina de dançar, ele abre os braços como quem sauda sua plateia ao final de um espetáculo. Os policiais da tropa de choque, então, erguem as mãos: quem se rendem são eles, diante do talento e da arte do menino. Pouco depois, os dizeres “parem de atirar em nós” finalizam a denúncia.

+ Um último ponto, pra encerrar. “C'mon ladies let's get in formation”. Vamos, garotas, vamos entrar na formação [de dança]. Vamos nos unir, diz Beyoncé, vamos lutar. Mas a sonoridade tão claramente se assemelha a “c'mon ladies let's get information” que não haveria como não ter sido intencional. Não há “coincidências” em uma composição e uma produção desse porte, há? Vamos garotas, vamos nos informar. Não acreditem sempre no que dizem os jornais, não acreditem sempre no que diz a grande mídia. Enxerguem por trás, procurem saber o que eles querem esconder por baixo dos tapetes. A melhor revanche, finaliza Beyoncé, é o dinheiro – que aqui é mais um símbolo pro trabalho e pro sucesso dela do que qualquer outra coisa. É o poder, é a posição que ela conquistou no mundo, é ter voz e respaldo; é fazer o show do intervalo do Superbowl dizendo que, sim, tem orgulho de ser negra, e que o país é dela também. O mundo é dela também.

Diva, maravilhosa.

P.S.: Beyoncé canta “quando ele [seu marido, Jay-Z] me fode bem eu levo seu traseiro pro Red Lobster”, famosa rede de restaurantes de frutos do mar. “Se ele acertar direitinho eu posso levá-lo pra dar uma volta no meu helicóptero”. A senhora é lacradora mesmo viu!!

Lis Kuroki

Pseudo-roteirista, meio quadrinista, aspirante a escritora. E ilustradora.

E um ser humano igual a todo mundo, com pulsões, vontades, sono e fome

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