top of page

Sobre nascer uma feminista


Sendo filha única de mãe solteira numa família essencialmente matriarcal, pode-se imaginar que

o feminismo tenha sido o caminho natural da minha existência. Talvez. Se o mundo não fosse

essencialmente machista, se a gente conseguisse privar nossos filhos da realidade lá fora, se os

seres humanos não fossem facilmente influenciáveis. Tantas vezes eu disse abobrinhas do tipo,

“não penso em mim como feminista, acho que sou humanista”. E nem faz tanto tempo. E tantas

outras abobrinhas eu disse. Bem se vê que não nasci exatamente feminista.

E sei que por este mundo há tantxs como eu. Mulher que acha romântico-no-melhor-estilo- filme-de-princesa o cara abrir a porta do carro ou pagar a conta sozinho, “esse machismo eu

gosto!”. Gente que tem dificuldade em entender que apesar de soarem parecidos, machismo e

feminismo não são inversamente proporcionais. Somos muitos, não somos fracos, mas para

alguns de nós ainda falta alguma coisa, a fagulha que nos faz ver que somos feministas e tudo

bem. E tudo bem enxergar problema onde ninguém mais enxerga problema. Ser ignorante era

mais fácil, mas estava longe de ser melhor.

E é sobre a fagulha que me fez perceber feminista que eu quero falar. Sobre o que me fez

descobrir. E foi um homem – ou, para ser mais exata, alguém do sexo masculino. E foi só agora,

eu já aos quase trinta, desde sempre num relacionamento de longa data, mãe de dois,

escrevendo sobre esses dois mais do que sobre qualquer outra coisa na vida, vendo a

maternidade transformar o meu olhar, o meu entendimento, o meu coração e o destino dos

meus pés. Não preciso mais me esconder com os humanistas. É feminismo, mesmo, e vamos

bem, obrigada. Mas talvez, não fosse por esse homem, eu nunca percebesse...

Aos 25 a maternidade passou a fazer parte de mim. Eu decidi ser mãe e ganhei o primeiro

grande-grande presente da minha existência, uma menina que veio para ser sol numa vidinha

meio tingida de cinza pelas perdas com que trombei no caminho. Mas, como nem tudo é só

maravilha no doce-azedo mundo das mães, Ana Clara nasceu e eu recebi meu primeiro ingresso

para o show de horror do machismo. Não aquele da TV, não aquele de que fui blindada numa

família em que as vozes femininas sempre foram ouvidas, mas um machismo leve, fingido de

cuidado e carinho, que ia me incomodando aos pouquinhos.

- Ela é linda! Quando crescer, vai te dar trabalho!

- Mas que belezinha. Parece uma boneca!

- Menina é tudo de bom, né? Olha como é delicada. Desde cedo. É doce, é meiga... menina é

menina, mesmo.

Fui ficando confusa. Ela parece uma boneca, o patriarcado deixou a herança e às vezes eu a

chamo de “Boneca”, mesmo, mas é gente, viu? Gente de verdade, com tudo que implica ser

gente. Sentir, gostar, amar, crescer, sofrer. Inclusive com os verbos proibidos: querer, falar,

gozar, poder. Não é que eu nunca tenha esbarrado com o machismo por aí. Mas quando é com

a cria, a nitidez é outra – e as reações mais extremas. E nisso chegou o dia em que me disseram

que eu estou cuidando dela com todo o carinho, “até ela crescer e vir um idiota que ela vai

apresentar por aí como namorado”. Bom. Pode ser um namorado, uma namorada, pode ser um

gato ou uma carreira desafiadora: não importa quem ou o que ela escolha ter a seu lado, é a

escolha dela e eu espero estar aqui, de esteio, tentando contribuir para que ela seja feliz – de

preferência, tentando não tachar ninguém de idiota sem ao menos conhecer (nem mesmo o

gato). Ela não é minha porcelana: ela é real, e como eu quero que ela viva tudo o que quiser

viver. E aí tive que abrir a boca. Disse coisas que eu nunca me imaginei dizendo – me posicionei,

e talvez tenha sido a primeira vez para alguém que estava habituada a viver em cima do muro.

Disse o que foi visto como absurdo para a mãe de uma menininha então com dois anos: que a

quero feliz em todos os aspectos da sua existência, inclusive sexualmente. Mas isso era só o

começo.

Três anos depois da Clara chegar, chegou mais um grande-grande presente na minha vida. O

Lucas. Ao mesmo tempo meu remanso e minha coragem. Quando Lucas nasceu, tudo isso

ganhou força, muito mais força.

Se ele chorava, é coisa de menino. Menino dá muito mais trabalho que menina.

Se ele queria colo, é coisa de menino. Menino é mais apegado, mesmo.

“Ele é lindo, a mulherada que se cuide”.

“Ele é desajeitado, homem é tudo bruto”.

“Por que o quarto não vai ser azul?”.

E foi esse homem que me fez ver que não dava. Não dava para não ser feminista, não dava para

educá-lo sob esses parâmetros machistas – a menina eu posso tentar blindar, eu posso

fortalecer, eu vou trabalhar para que ela acredite na sua voz e nas suas ações. Mas agora era

algo além, talvez algo mais desafiador: educar este pequeno homem para que ele não reproduza

esse padrão machista com que me deparo em cada conversa-de-ponto-de-ônibus, em cada

propaganda, em cada esquina. Eu vi que não se trata apenas de dizer a Clara que ela importa –

trata-se também de dizer ao Lucas que todas as mulheres importam. Esse homem, gerado no

meu sagrado feminino, me trouxe a reflexão de que alguma coisa estava muito errada, que essas

cobranças todas não tem lugar na nossa felicidade. E então eu já era feminista.

Não posso criá-los compactuando com um machismo disfarçado de boa intenção. Não dá para

ver a sociedade cobrando da minha filha o falar baixo e o sentar de pernas fechadas, enquanto

ele é cobrado de ser enérgico, vigoroso, desinibido. Eu não posso reproduzir essas falácias

dentro da minha casa, alimentar expectativas de gênero que não passam da transferência dos

valores alheios, valores estes tantas vezes já deturpados e corrompidos, para crianças puras,

que estão só começando a escrever a sua história. E que passam sim pelo machismo, pela

conversa fiada de ver as meninas como frágeis bibelôs e os meninos como corajosos

desbravadores, por receitas prontas de educação de crianças que não resultaram em nada de

proveitoso para nossa sociedade já permeada de misoginia.

Às vezes me perguntam, “é muito diferente, ter uma menina e um menino?”. É. Muito diferente.

Tanto quanto ter duas meninas ou dois meninos, ou seja, quaisquer dois seres humanos que

tem cada um suas habilidades, aptidões, personalidades. Nós somos todos únicos. Isso tem a

ver como uma série de coisas, o que pode até incluir nossos cromossomos e hormônios, mas

que tem muito mais a ver com nossas histórias e escolhas. E nem por isso, na diferença,

deixamos de ser iguais nos nossos direitos e na nossa capacidade. Minha filha não é menos capaz

de ser uma consagrada lutadora de jiu-jitsu, nem o meu filho tem qualquer impedimento para

ser um fenômeno no bordado de ponto-cruz. E todos os dias eu tento construir a resposta para

esta questão que dorme e acorda ecoando em mim: como, no meio deste balaio de gato, se

educam crianças livres de estereótipos? Como fazemos nossos filhos mais do que menino e

menina, rosa ou azul, bonecas e carrinhos, “senta aqui com a mamãe e deixe os meninos

escalarem a árvore, não é coisa para mocinhas”? Esse é o problema que eu me coloco e que

gostaria muito de não responder sozinha. E responder não enquanto produto do meio, ser

produto é muito pouco. Temos que produzir, desdobrar, (re)construir a realidade para que seja

também nossa e assim saciar nossos anseios mais profundos.

Sobre meus filhos, digo que vou fazendo aqui experiências que espero dividir em breve. Já

adianto, no entanto, que como toda mãe vou errando, acertando, tentando. Meu desejo para

eles é bem simples: que eles tracem seu caminho, vou lutar a seu lado para que conquistem seu

lugar ao sol – o sol de sua escolha.

Sem limitações de gênero.

Sem machismos.

Sem julgamentos.

Quando alguém me diz, alegrinho, “que belezinha, você tem um de cada!”, me sinto um tanto

indelicada. Tenho que corrigir: tenho um casal de filhos, biologicamente falando, mas são dois

do mesmo. Dois seres humanos. Gerados do amor, para o amor. E só.

Ana Detoni

Se você for prático, sou arquiteta. Se você for ligado nos astros, sou de gêmeos. Se seu lance é mais social, sou casada e mãe de dois. Geograficamente, estou aqui no sudeste. Se você quer saber porque diabos eu estou escrevendo, escrevo desde que me entendo por gente – alfabetizar nem carecia, eu escrevia em rabiscos e arabescos, devaneando, contando as histórias que eu imaginava, e escrevo mesmo sem porquê. Se você é nerd, toca aqui! Se pra você não serviu nada disso, eu sou a Ana. Cada dia me conheço um pouco mais e às vezes me conheço até nos outros. Tentando deixar filhos melhores para o mundo, tentando meu melhor pra dar uma arrumada no mundo que eu vou deixar aos meus filhos. Um dia de cada vez.

Comments


Posts Em Destaque
Posts Recentes
Arquivo
Procurar por tags
Nenhum tag.
Siga
  • Facebook Basic Square
  • Twitter Basic Square
  • Google+ Basic Square
bottom of page